Depois de mais de um milênio de trevas e apostasia, quando a Igreja gradativamente foi invadida por variadas heresias perniciosas, a luz da verdade prevaleceu sobre uma era de obscuridade religiosa. Os pré-reformadores John Wycliffe, John Huss e Girolamo Savonarola abalaram as estruturas da hegemonia católica preparando o caminho para Lutero, embora tenham sido condenados como hereges e queimados na fogueira.
Em 31 de outubro de 1517, Martinho Lutero publicou suas 95 teses, dando início a um dos eventos mais importantes da história da Igreja: a Reforma. Todo o pensamento das doutrinas cristãs foi resumido em cinco pilares, os cinco solas: Somente a Escritura, Somente Cristo, Somente a Graça, Somente a Fé e Somente a Deus a Glória.
A Reforma nos brindou com o retorno às Escrituras e a recuperação da base da salvação unicamente pela maravilhosa graça de Deus, e não por obras. O Sola Gratia é um desses pilares fundamentais. No entanto, mesmo depois de o cristianismo comemorar os 500 anos da Reforma, a falta de profundidade na vida com Deus tem gerado muitos equívocos doutrinários, e os frutos têm sido superficialidade e desvios espirituais na vida cristã.
Nestes dias, a graça de Deus tem sido mal compreendida e mal representada por muitos. Alguns pensam que, por estarmos na graça, não temos nenhuma responsabilidade. Não temos de fazer mais nada; Deus, em Sua graça, fará tudo. Deus é amor e é tudo por Sua conta. Será mesmo que não há disciplina para o cristão leviano nem juízo para o desobediente?
Por vivenciarmos uma geração que tem quebrado as pontes de suas raízes históricas, boa parte da Igreja tem sido arrastada pelos embaraçosos rios de movimentos liberais. “Pois certos indivíduos (…) transformam em libertinagem a graça do nosso Deus…” (Judas 1.4).
Como bem disse Tozer: “Há muitos vagabundos religiosos no mundo que não querem estar amarrados a coisa alguma. Eles transformaram a graça de Deus em libertinagem pessoal. As grandes almas, entretanto, são aquelas que se aproximam reverentemente de Deus compreendendo que em sua carne não habita bem algum”, por isso contam com Sua graça para uma vida santa e de serviço a Ele.
Acertadamente disse MacGraham: “A graça de Deus faz aumentar a nossa responsabilidade. Em vez de nos libertar de muitas responsabilidades, com a graça d’Ele vem junto tremenda responsabilidade. E é um grande privilégio, com essa responsabilidade, receber a graça para servir”.
Você pode argumentar: mas não somos salvos pela pura graça? Sim, é verdade. Mas você sabe do que e para que fomos salvos? A salvação, pela graça, é apenas o primeiro passo da carreira no Reino de Deus. Tozer ainda nos adverte: “Bem, a graça é que fez você entrar no reino de Deus. É um favor imerecido. Porém, depois de você assentar-se à mesa do Pai, Ele espera poder ensiná-lo como se portar à mesa. E Ele não lhe permitirá comer enquanto você não obedecer à etiqueta de Sua mesa”.
Paulo, de emissário do ódio a apóstolo da graça
Embora representasse a “glória” do judaísmo, como um religioso cego, sem a graça de Deus Paulo apenas se tornou a ponta da lança da horda do inferno contra o cristianismo.
Enfurecido como uma besta-fera, Saulo foi um perseguidor implacável dos cristãos e os matava. Sinceramente, porém errado, cometia atrocidades em nome do zelo religioso. Mas foi capturado pela graça de Deus quando o Senhor Se revelou a ele no caminho de Damasco. Então, viu que Aquele que ele pensava ser um impostor era o verdadeiro Messias, o Filho de Deus. Ele viu que as pessoas da seita que odiava e perseguia, na verdade, eram membros do Seu misterioso corpo, onde o ressurreto Jesus habitava pelo Espírito Santo.
O maior dos pecadores, merecendo Sua ira como sentença e o inferno como habitação, foi vencido por Seu amor e misericórdia. No lugar de condenação, perdão. De ódio, amor.
O grande Saulo, que acreditava representar o Deus irado do Antigo Testamento, conheceu-O, na pessoa de Jesus, como a encarnação do amor e da graça. O inimigo é transformado em amigo, e o que antes transpirava ódio e morte, com a graça agora exala a fragrância do perfume de Cristo. Aquele que era um emissário do ódio tornou-se um apóstolo da graça maravilhosa.
“Dou graças a Cristo Jesus (…) que me considerou fiel, designando-me para o ministério…” Quando Deus o considerou fiel e o chamou ao ministério? Quando ele perseguia e matava os cristãos. “… a mim que anteriormente fui blasfemo, perseguidor e insolente; mas alcancei misericórdia, porque o fiz por ignorância e na minha incredulidade.” “… contudo, a graça de nosso Senhor transbordou sobre mim, juntamente com a fé e o amor que estão em Cristo Jesus” (1 Timóteo 1.12-14).
Depois de salvo pela graça, ele não se contentou em apenas se reunir para adorar a Deus com os santos em Jerusalém e ouvir as impactantes pregações de Pedro. Não! Ele foi além. “E a sua graça, que me foi concedida, não se tornou vã” (1 Coríntios 15.10).
Como embaixador da graça, tornou-se o maior evangelista, o homem mais profundo da Palavra, o apóstolo dos gentios e o maior plantador de igrejas de toda a história do cristianismo. Plantou igrejas nas províncias da Galácia, Macedônia, Acaia e Ásia Menor. Nenhum homem exerceu tanta influência sobre toda a civilização. Nenhum escritor foi tão conhecido e teve suas obras tão divulgadas e comentadas quanto ele.
Em sua obra Paulo – o maior líder do cristianismo, Hernandes Dias Lopes diz: “Paulo foi o maior bandeirante do cristianismo, seu expoente mais ilustre, seu arauto mais eloquente, seu embaixador mais conspícuo. Pregou com zelo aos gentios e aos judeus, nas escolas, cortes, palácios, sinagogas, praças e prisão. Com a mesma motivação, pregou quando tinha fartura e também quando passava por privações. Ele enriqueceu muitos, sem nada possuir. Embora tenha experimentado fome e frio, suportado cadeias e tribulações, passado os últimos dias numa masmorra e enfrentado o martírio por ordem de um imperador insano, sua vida ainda inspira milhões de pessoas em todo o mundo. Sua conversão extraordinária foi um divisor de águas não só em sua vida, mas também na história da humanidade. (…) Depois de sua conversão, seu zelo pela glória de Deus o fez gastar-se sem reservas pelos cristãos”.
Ele se tornou o maior escritor do Novo Testamento, escrevendo 13 dos seus 27 livros. Segundo o Dr. Martin Lloyd-Jones, a Igreja, em todos os séculos, reconhece que a Carta aos Romanos é a primeira em importância. Ela foi usada por Deus para a conversão de Agostinho de Hipona, de Lutero e foi instrumento crucial para a Reforma; foi a lâmpada que trouxe luz para a vida de John Bunyan, ao lado de Gálatas, e de John Wesley, entre muitos outros. Para Samuel Taylor Coleridge, Romanos “é a mais profunda obra escrita que existe [no mundo]”.
Vale a pena considerar a contribuição de ouro de T. Austin-Sparks: “Mais de uma vez já ouvimos que hoje o mundo necessita de outro Paulo. (…) é muito necessário e importante lembrar que Paulo foi um representante da Igreja, a qual é o vaso corporativo para o testemunho do Senhor (…), e que o Senhor nunca pretendeu repetir Paulo pessoalmente e ter um Paulo individual ou em pessoa em cada geração. Mas o que o Senhor pretendia era que toda a Igreja fosse, nesta dispensação, o que Paulo era. (…) Paulo foi colocado como um modelo, um representante, uma personificação de toda a Igreja (…). As características da vida espiritual de Paulo deviam ser os constituintes da Igreja do começo ao fim da dispensação, para que pudéssemos estar mais próximos do alvo. Assim, diríamos que o necessário hoje seria não outro Paulo, mas a Igreja de acordo com Paulo, em sua constituição espiritual. Não é o Paulo individual ou em pessoa, mas é o que veio espiritualmente por meio de Paulo e com ele, constituindo a Igreja, constituindo todo o Corpo”.
“… trabalhei mais do que todos eles [os apóstolos]; contudo, não eu, mas a graça de Deus comigo”– (1 Coríntios 15.10).
Para aquele que é salvo pela graça de Deus, daqui para frente também deve crer que Sua graça nos capacita a viver e trabalhar para Deus.
John Newton e o hino Maravilhosa Graça
O princípio da maravilhosa conversão de Paulo e seu chamado ao ministério tem se repetido na vida de muitos. Quem nunca ao menos sussurrou o hino “Maravilhosa graça”? Seu compositor, John Newton (1725 — 1807), foi um traficante de escravos. Ele era um terrível pecador, imoral, a ponto de ser conhecido como o grande blasfemo.
Ele foi alvo da graça e transformado em pregador do evangelho da graça. Antes oprimido pelo diabo, agora cheio do Espírito Santo. O que conduzia homens como bichos, pela tirania do chicote, agora os apascenta como ovelhas do rebanho celestial. O ex-missionário do ódio passou a conduzir escravos do pecado à liberdade da graça de Deus.
Ele foi totalmente transformado de seu passado desenfreado e pecador e durante 43 anos serviu no evangelho em Olney e Londres. Nas palavras de Christian Chen, “um grande Salvador transformou um grande pecador em um grande pregador e um grande escritor de hinos”.
A frutificação da graça em William Carey
William Carey (1761-1834) nasceu na zona rural da Inglaterra. Frequentou a escola até os 12 anos e com 14 começou a trabalhar como sapateiro. Converteu-se aos 17 e foi ordenado ao ministério com 26.
Inspirado pelos escritos de Jonathan Edwards, foi despertado para pregar o Evangelho aos povos não alcançados.
Em 1791, depois de várias pesquisas, notou que 70% do mundo não professava o cristianismo. Quando Carey apresentou suas ideias a um grupo de pastores, um ancião replicou: “Jovem, sente-se. Quando Deus quiser converter os pagãos, Ele o fará sem a sua ajuda ou a minha”. Mas Carey não desistiu do chamado da graça em seu coração. Ele lutou até o fim e foi pregar aos povos da Índia. Em 1818, fundou a faculdade de Serampore, escola de treinamento para pastores e missionários indianos.
Ele era autodidata, apaixonado por linguística, botânica, história e geografia. Apesar da extrema pobreza, aprendeu latim, grego, hebraico, italiano, francês, holandês, bengali, sânscrito, marati e outras línguas orientais e traduziu a Bíblia, ou parte dela, para 37 idiomas da Índia. Seu ministério prosperou tanto que foi reconhecido como o pai das missões contemporâneas. Por meio dele, muitos outros responderam à graça como missionários e a pregação do evangelho chegou a muitos povos.
A graça transborda em boas obras
Talvez nada teste mais nossa espiritualidade e doutrina do que o compromisso com as boas obras. Há uma infinidade de serviços na casa do nosso Rico Senhor para que cada filho de Deus se torne operante trabalhador e não seja ocioso. Mulheres sustentavam Jesus e Seus colaboradores com suas ofertas (Lucas 8.1-3). O Conde Zinzendorf aplicou sua fortuna nos moravianos, e assim um avivamento de oração perdurou por cem anos e muitos missionários foram enviados pelo mundo espalhando o Evangelho. Marta e Maria nos dão exemplo da bênção de abrir nossa casa e exercermos a hospitalidade. Na casa de Maria praticava-se o ministério da oração corporativa. Um anjo salva Pedro da prisão, e João Marcos, filho de Maria, torna-se um cooperador dos apóstolos (Atos 12). Dorcas costurava roupas para as viúvas.
Em Romanos 16, vemos que Derbe era diaconisa na igreja em Cencreia, hospedava a muitos e a Paulo e levou sua carta aos romanos. Priscila e Áquila eram cooperadores de Paulo e cuidavam das igrejas mais novas. E apesar de a igreja em Roma ser uma, havia pelo menos três assembleias de irmãos, não apenas se reunindo, mas trabalhando. Paulo menciona uma ampla lista de irmãos e irmãs que cooperavam com ele no Evangelho.
Pedro recomendou a Paulo: não se esqueça dos pobres! Paulo esforçou-se em cumprir esse serviço tanto quanto pregou aos gentios. Ele desenvolveu um forte ministério de socorrer os pobres, a ponto de envolver as igrejas nesse encargo. Como bem ressaltou John Stott: “Nossa contribuição cristã pode expressar nossa teologia”.
Em 2 Coríntios 8, Paulo faz um tributo à graça de Deus por meio das boas obras em socorro aos pobres. Ele queria que os irmãos soubessem da graça que Deus havia concedido às igrejas da Macedônia. Esses santos eram provados com muitas aflições, mas eram cheios de alegria. E sua extrema pobreza transbordou em rica generosidade, porque eram cooperadores da graça. Mas Paulo quis testemunhar que, ainda assim, eles deram não apenas o que podiam, mas muito além disso, e o fizeram por iniciativa própria. Esses santos eram pobres, mas ricos em generosidade. Eles rogaram para participar da graça de suprir os demais. Eles fizeram até mais do que se esperava. É possível sermos prósperos e cheio de contentamento, mas, devido ao egoísmo, vaguearmos no limbo da angústia e sermos açoitados pelo descontentamento de Deus.
Será que conhecemos a graça de nosso Senhor Jesus Cristo? Embora fosse rico, por amor a nós Ele Se fez pobre, para que por meio da pobreza d’Ele fôssemos ricos. E assim como demonstrou Sua graça por meio de obras, especialmente a obra da cruz, não devemos amar apenas de palavras, mas também pelas boas obras de amor, transmitindo a graça que recebemos d’Ele, servindo e cuidando uns dos outros. Nossa contribuição é uma prova viva de nossa obediência, ou desobediência, ao Evangelho– (2 Coríntios 9.13).
“Parece que Jesus vê o cuidado para com os pobres como parte da essência daquilo que é ser cristão.” – Timothy Keller
George Muller foi o pai dos órfãos, exercendo fé para levantar orfanatos para acolher milhares de orfãos. Moody, além de conduzir pelo menos 500 mil almas a Cristo, levantou orfanatos para moços e moças carentes; embora pobre e semianalfabeto, fundou uma editora, um centro de treinamento para novos obreiros e uma universidade. Suzana Spurgeon criou um fundo para suprir pastores com bons livros, para que fossem mais capacitados no ministério. Ruth Lee era a secretária de Watchman Nee, e somos devedores a ela por muitos dos seus escritos e livros.
Falta-nos tempo para mencionar tantos outros que, confiados na graça, trabalharam para Deus. Certamente, com oração e dedicação, todos nós poderemos encontrar nossos lugares para servir ao Senhor de diferentes formas.
Graça: uma capacitação divina de poder
F. F. Bruce ressalta: “A indignidade de Paulo serve apenas para realçar a graça soberana. Ela não foi inútil, vazia, sem resultados. ‘Trabalhei mais do que todos eles…’: Indica a natureza da graça concedida; uma capacitação divina de poder”.
Por que, então, há tantos cristãos como varas secas, sem vida e infrutíferos? Embora vários motivos possam nos privar da graça, parece-nos que a soberba, a mãe da insubmissão e filha do orgulho, é a mais nociva.
Como ressaltou Andrew Murray: “O orgulho é a raiz de todo pecado e mal, a porta, o nascimento e a maldição do inferno, a explicação de toda decadência e fracasso. O orgulho da ‘santidade’ é o mais sutil de todos os males, enquanto a humildade é o único solo fértil no qual a graça de Deus pode produzir abundante fruto. O mal não pode ter início a não ser pelo orgulho, e não ter fim a não ser pela humildade. A verdade é esta: o orgulho tem de morrer em você, ou nada dos céus poderá viver em você. A humildade tem de lançar a semente, ou não pode haver colheita nos céus”.
Portanto, “esforcem-se para viver em paz com todos e para serem santos; sem santidade ninguém verá o Senhor. Cuidem que ninguém se exclua da graça de Deus. Que nenhuma raiz de amargura brote e cause perturbação, contaminando a muitos” (Hebreus 12.14-15).
Você tem respondido à graça que o Senhor depositou em sua vida para servir? O que você tem feito com seus dons e as oportunidades que aparecem diante de você? Você tem respondido com fé trabalhando confiante na graça de Deus ou tem permitido ao inimigo paralisar sua vida, impedindo o progresso da graça? Lembre-se: “Deus não nos deu espírito de covardia, mas de poder, de amor e de equilíbrio” (2 Timóteo 1.7).
“Como cooperadores de Deus, suplicamos a vocês que não recebam em vão a graça de Deus” (2 Coríntios 6.1).
Gerson Lima
Monte Mor, julho de 2020.
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Revisão: Paulo César de Oliveira.
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